Crença ou fé religiosa é a convicção despertada pelas diretrizes de uma doutrina considerada sagrada e que se compatibilizam com o pensamento do indivíduo que as adota. Embora devesse ter por objetivo o despertar espiritual das pessoas e incentivá-las à reforma moral, nem todas as vertentes ditas religiosas preconizam os valores espirituais, induzindo muitas vezes os seguidores a caminhos que nada têm a ver com espiritualidade, introduzindo neles a chamada “fé cega” e, em muitos casos, o fanatismo.
O Brasil, em função de características peculiares como sua enorme abrangência territorial e a miscigenação étnica da população, originária das mais diversas culturas, é um fértil campo à adoção de crenças também originárias de variados segmentos culturais. Embora a religião católica ainda tenha prevalência entre os brasileiros, novas doutrinas costumam ser implantadas em todo o território, tanto no núcleo efervescente das grandes metrópoles quanto nos rincões mais bucólicos e isolados do país.
Por sua natureza dominantemente afável e acolhedora, e, em muitos casos, com uma boa dose de ingenuidade, grande parte do povo brasileiro é suscetível às investidas – nem sempre bem-intencionadas – dos propagadores de profecias que vão se multiplicando a olhos vistos, exatamente como advertiu Jesus ao dizer: “Guardai-vos para que ninguém vos seduza, porque muitos virão sob meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Cristo’, e eles enganarão a muitos.” – Mateus 24:4-5.
No item 8 do capítulo 21 de O Evangelho Segundo o Espiritismo, alertando sobre as ações dos “falsos profetas” no mundo, os autores espirituais da obra assim alertam: “Se vos dizem: ‘O Cristo está aqui’, não corrais para ali, mas, ao contrário, mantei-vos em guarda, pois serão numerosos os falsos profetas. Não vedes as folhas da figueira que começam a desbotar? Não vedes seus numerosos brotos esperando a época da floração? E não vos disse o Cristo: Reconhece-se a árvore por seu fruto? Portanto, se os frutos são amargos, julgais que a árvore é má; mas se são doces e salutares, dizeis: Nada de puro pode sair de um tronco ruim”.
Dentre as distorções que se aplicam a certos conceitos religiosos estão a indução ao culto sagrado tendo por objetivo as conquistas materiais e a ideia de que somente os seguidores desta ou daquela vertente estão agradando a Deus e trilhando o “caminho da salvação”, em detrimento de todos os demais. Essa prática, além de discriminatória e sem qualquer embasamento sensato, gera conflitos e dissensões que contrariam sobremodo as ações de amor e caridade propagadas e exemplificadas por todos os líderes verdadeiramente religiosos, que vêm ao seio da humanidade terrena com a finalidade de auxiliá-la em sua ascensão evolutiva.
No capítulo 8 desta mesma obra kardequiana, ao explanar sobre o tema “Bem aventurados os que têm puro o coração”, os autores trazem importante esclarecimento sobre o papel fundamental da religião e da crença que esta deve objetivar:“O objetivo da religião é conduzir o homem a Deus; ora, o homem só chega até Deus quando está perfeito; portanto, toda religião que não torna o homem melhor, não atinge o objetivo. Aquela sobre a qual se acredita ser possível apoiar-se para fazer o mal ou é falsa, ou foi falseada em seu princípio. Tal é o resultado de todas as religiões em que a forma supera o fundo. A crença na eficácia dos sinais exteriores é nula se essa crença não impede de cometer assassínios, adultérios, espoliações, dizer calúnias e fazer qualquer tipo de mal a seu próximo. Ela faz supersticiosos, hipócritas ou fanáticos, mas não faz homens de bem.”
Por essas palavras, deduz-se que somente a doutrina que incentive a prática do bem em todas as suas nuanças pode ser considerada verdadeiramente religiosa, levando-se em conta que o objetivo primordial de qualquer religião deve ser o de aproximar o homem de Deus, tornando-o mais espiritualizado e menos suscetível às paixões terrenas, sobre as quais se assentam apenas os instintos carnais.
Na questão 654 de O Livro dos Espíritos, Kardec fez a seguinte pergunta: “Deus tem uma preferência pelos que O adoram desta ou daquela forma?” e a resposta dos autores foi a seguinte: “Deus prefere os que O adoram do fundo do coração, com sinceridade, fazendo o bem e evitando o mal, àqueles que acreditam honrá‑Lo com cerimônias que não os tornam melhores para seus semelhantes”.
E seguem explicando que “todos os homens são irmãos e filhos de Deus; Ele chama para si todos os que seguem Suas leis, seja qual for a forma pela qual se expressam. Aquele que só aparenta ter piedade é um hipócrita; aquele cuja adoração é apenas fingimento e está em contradição com a sua própria conduta, dá um mau exemplo”.
Dando continuidade à extensa resposta, os espíritos esclarecem que quem diz ter uma vida religiosa, mas ainda alimenta sentimentos inferiores como orgulho, inveja, ciúme, ambição pelos bens materiais e que se mostra intolerante para com as fraquezas alheias tem a religião de modo aparente e não de forma verdadeira, ou seja, não na intimidade do coração, pois lhe faltam convicção e força de vontade para colocar em prática o que teoricamente apregoa.
E as advertências não param por aí, já que os esclarecimentos são também direcionados aos que, tendo conhecimento das leis divinas, insistem em descumpri-las: “Aquele que conhece a verdade é cem vezes mais culpado pelo mal que faz do que o selvagem ignorante do deserto, e será tratado em consequência disso, no dia da justiça. Se um cego vos empurra ao passar, vós o desculpais; se é um homem que enxerga perfeitamente, vós reclamais, e com razão”.
Finalizando a resposta ao questionamento de Kardec, dizem os autores de O Livro dos Espíritos que é desnecessário perguntar se existe uma forma de adoração que seja mais agradável a Deus, pois isso seria o mesmo que perguntar se Ele tem preferência por este ou aquele idioma no momento em que o fiel estiver fazendo sua oração. Ora, se todos os homens são filhos de Deus, não há razão para haver discriminações em função do modo como expressam sua fé; o que os diferenciam é a forma (sincera ou falsa) com que o fazem. “Os cânticos só chegam a Deus pela porta do coração”, elucidam os Espíritos.
Desse modo, podemos deduzir que novas crenças sempre existiram e continuarão a existir, mas que o homem, com o passar do tempo e o inevitável amadurecimento adquirido ao longo de suas reencarnações, estará cada vez mais atento a perspicaz, o que dificultará o assédio dos oportunistas de plantão que exploram a fé alheia, criando dogmas ilusórios e promessas de salvação que somente poderão ser alcançadas pelas conquistas morais do próprio indivíduo e não pela terceirização de suas responsabilidades a pretensos líderes espirituais, tão fugazes quanto o alcance de suas palavras vazias.
Referências:
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução de Matheus Rodrigues de Camargo. 7ª reimp. Capivari, SP: Editora EME, 2020, pág. 34.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Matheus Rodrigues de Camargo. 24ª reimp. Capivari, SP: Editora EME, 2019.
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