top of page

O Livro de Jó e a Lei de Causa e Efeito no Espiritismo


Por: Jeferson Quadros

 

A Humanidade, desde seus primórdios, cultiva um sentimento inato que leva a crer na existência de um Ser Superior, ao qual aprendemos a chamar de Deus, criador de tudo e de todos. Filhos carentes que somos, procurávamos um Pai Amoroso e bom que pudesse ser nosso esteio nas horas graves. E o encontramos! Aprendemos a manter relação com Ele através de rituais, de orações, objetos e louvores, buscando proteção e amor, mas a crença na Sua bondade e justiça, ao longo dos séculos, foi poluída ao ponto de ser transmutada em uma postura de severidade extrema. Contudo, a lembrança do Deus de amor não se perdeu.

Um exemplo clássico dessa visão do Deus amoroso é o Livro de Jó, escrito por volta do ano 450 a.C., que é classificado como um dos livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento. Trata-se, segundo especialistas, de uma fábula, escrita por autor desconhecido, baseada em relatos transmitidos oralmente na região do Oriente Médio desde tempos que ultrapassam 2 mil anos antes de Cristo.

Resumidamente, esse livro conta a história de um homem chamado Jó, pessoa íntegra e justa, que jamais perdeu a fé em Deus apesar de enfrentar duras provas. As dificuldades pelas quais Jó passou foram decorrentes de um desafio proposto a Deus, por Satanás. Segundo o Diabo, Jó mantinha-se fiel, pois era agraciado pelas bênçãos de Deus, mas caso as perdesse se revoltaria contra o Criador. A história é construída em forma de prosa e verso, permeada de monólogos e diálogos, trazendo belas reflexões sobre a Justiça Divina, a prática do bem e a fé.

Os ensinamentos contidos no Livro de Jó, apesar de sua natureza teológica, vão contra os conceitos pregados por muitas ideologias religiosas e filosóficas que professam o que podemos chamar de “teologia da prosperidade”, aquela na qual a fidelidade a Deus é plenamente recompensada com bençãos, saúde e prosperidade e a infidelidade é castigada com miséria e sofrimentos de diversos matizes.

Analisando o conceito da justiça descrito nos textos bíblicos, notamos que está baseado na disposição de Deus em fazer alianças com os homens. Segundo esse conceito, Deus privilegia os justos, que são os homens fiéis e engajados nas comunidades humanas, demonstrando preocupação com as pessoas que sofrem qualquer tipo de necessidade. A esses, os justos, Deus permite que usufruam de concessões e dádivas no transcorrer da vida.  Em oposição aos justos existem os maus, que, além de infiéis, são egoístas e gananciosos. Esses interferem de forma negativa nas comunidades, e por isso Deus reserva a eles amarguras, dores e dificuldades.

No Livro de Jó, o Demônio questiona a Deus se existe um homem justo e fiel, sem segundas intenções: se Deus recompensa a justiça com prosperidade, não estariam os homens simulando a fidelidade por egoísmo? Então o Demônio pede a Deus que teste essa tese removendo a prosperidade de Jó, o mais justo de todos os servos. Deus aceita a proposta e permite que Jó seja testado, mas ao contrário da teoria do Demônio, Jó segue confiante em Deus, mantendo-se fiel, mesmo nas horas difíceis. A história de Jó põe em xeque a teoria da teologia da prosperidade, demonstrando que os reveses da vida afetam a todos, bons e maus, justos e injustos, dependendo de fatores que vão além da fidelidade ou infidelidade a Deus.

Construindo raciocínio que se equipara ao conceito de equidade da Justiça Divina exposto no Livro de Jó, a Doutrina Espírita demonstra que todas as vicissitudes da vida são reflexos da ação da Lei de Causa e Efeito, em decorrência do mau uso do livre-arbítrio. Na obra O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec discorre a respeito:

De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida.

Remontando-se à origem dos males terrestres, reconhecer-se-á que muitos são consequência natural do caráter e do proceder dos que os suportam. (KARDEC, 2023, p.70)

O Codificador explica que as vicissitudes da vida são resultadas dos comportamentos assumidos e do nível de moralidade que caracteriza os indivíduos que as sofrem, sendo causadas pelos abusos cometidos na presente ou em anteriores reencarnações. Entende-se, então, que não existe motivo para supor que os infortúnios estejam vinculados à fidelidade a Deus, pois a Lei de Causa e Efeito não se apoia na postura ou opção religiosa. A questão 258a de O Livro dos Espíritos explica o assunto:

Não é Deus, então, quem lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?

“Nada ocorre sem a permissão de Deus, porquanto foi Deus quem estabeleceu todas as leis que regem o Universo. Ide agora perguntar por que decretou Ele esta lei e não aquela. Dando ao Espírito a liberdade de escolher, Deus lhe deixa a inteira responsabilidade de seus atos e das consequências que estes tiverem. Nada lhe estorva o futuro; abertos se lhe acham, assim, o caminho do bem, como o do mal. Se vier a sucumbir, restar-lhe-á a consolação de que nem tudo se lhe acabou e que a Bondade divina lhe concede a liberdade de recomeçar o que foi malfeito. Ademais, cumpre se distinga o que é obra da vontade de Deus do que o é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós quem o criou e sim Deus. Vosso, porém, foi o desejo de a ele vos expordes, por haverdes visto nisso um meio de progredirdes, e Deus o permitiu” (KARDEC, 2022, p. 139)

O Espiritismo demonstra, desta forma, que Deus é extremamente justo e bom, dando aos Seus filhos muitas possibilidades e oportunidades de aprendizagem e evolução, independente do patamar moral no qual estagiam. Pelos mecanismos da Pedagogia Divina, são ofertadas tantas chances quantas forem necessárias para que os indivíduos alcancem os objetivos evolutivos, sendo que aqueles que mais erram receberão mais oportunidades de aprender ao mesmo tempo em que sofrem as consequências dos erros cometidos.

Para que entendamos de forma clara os Mecanismos Divinos de educação moral e sua relação com a Lei de Causa e Efeito, Kardec lembra que:

Deus, porém, quer que todas as suas criaturas progridam e, portanto, não deixa impune qualquer desvio do caminho reto. Não há falta alguma, por mais leve que seja, nenhuma infração da sua lei, que não acarrete forçosas e inevitáveis consequências, mais ou menos deploráveis. Daí se segue que, nas pequenas coisas, como nas grandes, o homem é sempre punido por aquilo em que pecou. Os sofrimentos que decorrem do pecado são-lhe uma advertência de que procedeu mal. Dão-lhe experiência, fazem-lhe sentir a diferença existente entre o bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou uma fonte de amarguras; sem o que, motivo não haveria para que se emendasse. Confiante na impunidade, retardaria seu avanço e, consequentemente, a sua felicidade futura. (KARDEC, 2023, p.71)(1)

Compreende-se, assim, que Deus emprega as agruras na vida de muitos indivíduos exclusivamente com finalidade educativa. Não há castigos ou punições impostas a quem quer que seja. O amor que o Criador nutre por todos os Seus filhos permite que sejamos compreendidos e perdoados. Entretanto, mesmo usufruindo do perdão e da compreensão, os homens estão sujeitos à Lei de Causa e Efeito, e não podem supor que estejam isentos à corrigenda, tal qual a consciência - aquela na qual está escrita a Lei de Deus (KARDEC, 2022, p241.), como consta na resposta à questão 621 de O Livro dos Espíritos - nos convida a promover.

Desta forma, infere-se que, por promulgação divina: (...) a sorte de cada alma deve depender das suas qualidades pessoais (...) Segundo os princípios de justiça, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas para haver essa responsabilidade, preciso é que elas sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbítrio há fatalidade, e com a fatalidade não coexistiria a responsabilidade (KARDEC, 2013, p.16).

Em suma, a vida e suas circunstâncias, sejam elas amenas ou graves, felizes ou sofríveis, serão sempre arquitetadas com base nas qualidades morais dos indivíduos e pelo empenho empregado por cada qual na adequação às Leis Divinas, ou seja, Deus não dispensa privilégios a ninguém, pois nos ama a todos da mesma forma. Sob a ação da Lei de Causa e Efeito, os indivíduos são induzidos a aprender com a repercussão dos próprios erros ou usufruir dos frutos de seus esforços, num perfeito mecanismo educativo orquestrado por Deus.

Tal qual Jó, mantenhamos a confiança irrestrita em Deus, independente das circunstâncias que a vida nos apresente, jamais esquecendo que os desígnios do Criador sempre visam o nosso bem. E aproveitemos os tesouros imateriais que a Doutrina Espírita nos lega, consolidando a fé, renovando forças e ampliando a compreensão das responsabilidades que pesam sobre nossos ombros, principalmente no que tange à Lei de Causa e Efeito, para que nossos esforços sempre rendam bons frutos no porvir.

 

==========

Referências:

1- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, tradução de Guillon Ribeiro. 1ª edição. Campo dos Goytacazes-RJ: Editora Letra Espírita, 2023.

2- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, tradução de Guillon Ribeiro. 1ª edição. Campo dos Goytacazes-RJ: Editora Letra Espírita, 2022.

3- KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno: ou a justiça divina segundo o Espiritismo, tradução de Manuel Quintão. 61ª edição, 1ª reimpressão. Brasília-DF: Editora FEB, 2013.

 

Comments


bottom of page