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O fluído vital e o suicídio



Por: Andresa Küster e Rodrigo Oliveira


A maior certeza da vida do corpo físico durante a encarnação terrena é o seu caráter finito. Muitos aspectos da existência humana dão margem a dúvidas e opiniões diferentes, mas não há como negar que o corpo físico possui fragilidades que lhe impõem um determinado prazo de validade. O Espiritismo considera o corpo físico como uma morada do espírito, um instrumento destinado a permitir a evolução do indivíduo encarnado. Nos casos de morte natural, considera-se que o princípio ou fluido vital que anima o corpo se extingue por completo. Na obra “A Gênese”, Kardec explica o conceito de princípio vital utilizando analogias com o calor e a eletricidade:

“Mas seja qual for a opinião que se tenha sobre a natureza do princípio vital, o certo é que ele existe, pois que se apreciam os seus efeitos. Pode-se, portanto, logicamente, admitir que, ao se formarem, os seres orgânicos assimilaram o princípio vital, por ser necessário à destinação deles; ou, se o preferirem, que esse princípio se desenvolveu, por efeito mesmo da combinação dos elementos, tal como se desenvolvem, em certas circunstâncias, o calor, a luz e a eletricidade.” (KARDEC, 2013, p. 168).


Nas últimas décadas, com a evolução da tecnologia e da medicina, houve aumento na expectativa de vida. Tais mudanças levaram a uma maior discussão sobre as maneiras pelas quais o estilo de vida pode influenciar a saúde do corpo físico na velhice. Entende-se que a adoção de hábitos adequados de alimentação e prevenção de doenças físicas e psicológicas podem contribuir para que seja possível usufruir de maneira mais satisfatória desse período. Os ensinamentos das obras espíritas incentivam tais cuidados, pois a preservação da saúde física pode favorecer a evolução espiritual, conforme ensina a Lei de Conservação detalhada em “O Livro dos Espíritos”. No capítulo V, do Livro III da referida obra, há incentivo para que as pessoas busquem o bem-estar durante a vida terrestre, desde que isso não seja obtido à custa de outrem ou causa de enfraquecimento de suas forças morais e físicas (Kardec, 2018, p. 238). No capítulo XI da obra “A Gênese” o codificador discorre sobre a necessidade de que o corpo físico seja adequadamente preservado para que ocorra o necessário progresso individual: “A obrigação que tem o Espírito encarnado de prover ao alimento do corpo, à sua segurança, ao seu bem-estar, força-o naturalmente a empregar suas faculdades em investigações, a exercitá-las e desenvolvê-las. Desse modo, sua união com a matéria é útil ao seu adiantamento, e é por isso que a encarnação é uma necessidade. Além disso, pelo trabalho inteligente que ele executa em seu proveito, sobre a matéria, auxilia a transformação e o progresso material do globo que lhe serve de habitação. É assim que, progredindo, colabora na obra do Criador, da qual se torna fator inconsciente. (KARDEC, 2013, p. 184).


Nos casos em que a morte do corpo físico decorre de causas naturais, atribuídas ao esgotamento do fluido vital, a separação do corpo físico pode ocorrer de maneira tranquila segundo a explicação dada pela espiritualidade no Livro II, Capítulo III de “O Livro dos Espíritos” em resposta a um questionamento sobre o momento da separação entre alma e corpo: “Frequentemente o corpo sofre mais durante a vida do que no momento da morte: neste a alma nada sente. Os sofrimentos que se experimentam algumas vezes no momento da morte são um prazer para o Espírito, que vê chegar o fim de seu exílio. Na morte natural, a que ocorre pelo esgotamento dos órgãos em consequência da idade, o homem deixa a vida sem o perceber, é uma lâmpada que se apaga por falta de energia” (KARDEC, 2018, p. 152).


Essas considerações levam ao entendimento de que o fluido vital está diretamente relacionado com o funcionamento dos órgãos do corpo físico. Disso decorre a compreensão de que a morte por causas naturais ocorre quando essa reserva de energia se esgota: “Os corpos orgânicos seriam então verdadeiras pilhas elétricas, que funcionariam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar quando tais condições desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais que uma espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos, sua produção cessa por ocasião da morte, por se extinguir tal ação.” (KARDEC, 2013, p. 169).


O medo do desconhecido e do sofrimento é o principal motivo pelo qual os seres humanos temem o momento do encerramento da existência terrena. Esse temor poderia ser menor, caso a todos fosse garantida a possibilidade de uma passagem tranquila para o plano espiritual, conforme descrito acima. É de se considerar que a morte por causas naturais, em tais condições, possa constituir um objetivo a ser alcançado, pois certamente resultaria em uma sensação de “dever cumprido”. Essa tranquilidade poderia ser alcançada após uma vida de longevidade, possibilitada por escolhas corretas que garantiriam a saúde dos órgãos do corpo físico. A necessidade de preservação dos órgãos também é destacada pela sua relação com a atividade do fluido vital, na obra “A Gênese”: “A atividade do princípio vital é alimentada durante toda a vida pela ação do funcionamento dos órgãos, do mesmo modo que o calor, pelo movimento de rotação de uma roda. Cessada aquela ação, por motivo da morte, o princípio vital se extingue, como o calor, quando a roda deixa de girar. Mas o efeito produzido sobre o estado molecular do corpo pelo princípio vital subsiste após a extinção desse princípio, como a carbonização da madeira persiste após a extinção do calor” (KARDEC, 2013, p. 168).


Em um outro extremo, em oposição à possibilidade de uma transição tranquila do plano físico para o plano espiritual, encontram-se as vítimas do suicídio. O sofrimento experimentado pelo indivíduo que atenta contra a própria vida pode ser considerado como uma consequência do desrespeito à ordem natural dos acontecimentos, já que a morte natural está relacionada com o caráter finito do princípio ou fluido vital que anima o corpo. Entende-se que a abreviação prematura da existência, tanto no caso do suicídio quanto no caso de acidentes fatais, implica na separação traumática do corpo físico, por ocorrer em um momento no qual ainda existe uma reserva considerável do fluido vital. No caso do suicídio, ao tratar de suas consequências no Livro IV, Capítulo I de “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec apresenta as seguintes observações: “A observação mostra, de fato, que os efeitos do suicídio nem sempre são os mesmos. Alguns há, porém, que são comuns a todos os casos de morte violenta e à consequente interrupção brusca da vida. Primeiramente, é a persistência mais prolongada e tenaz do laço que une o Espírito ao corpo, laço que se encontra quase sempre em todo o seu vigor no momento em que é rompido, ao passo que, em caso de morte natural, se enfraquece gradualmente, e muitas vezes se desfaz antes que a vida seja completamente extinta. As consequências desse estado de coisas são o prolongamento da perturbação espiritual, além da ilusão que, durante um período de tempo mais ou menos longo, faz o Espírito acreditar que ainda está entre os vivos. A afinidade que persiste entre o Espírito e o corpo produz, em alguns suicidas, uma espécie de repercussão do estado do corpo sobre o Espírito, que sente, independente de sua vontade, os efeitos da decomposição, experimentando uma sensação cheia de angústia e de horror, e esse estado pode persistir pelo tempo que devia durar a vida interrompida” (KARDEC, 2018, p. 307-308).


Assim sendo, percebe-se que a manutenção do vínculo potencializa o sofrimento experimentado pelo suicida, pois além de carregar a culpa pelo gesto extremo, sente as dores que o processo de decomposição impõe ao corpo inanimado, já que nesses casos se mantém uma parcela de fluido vital não consumido. Diversas obras espíritas esclarecem quanto à variabilidade da duração desse sofrimento causado a si mesmo pelo suicida. Na obra “Suicídio – A Falência da Razão”, por exemplo, o autor Luiz Gonzaga Pinheiro esclarece que não se pode adotar uma regra geral para todos os casos, pois inúmeros fatores podem levar a diferentes conclusões para cada situação específica (Pinheiro, 2018, p.77):

“Ao se suicidar, o espírito que pôs termo ao seu corpo físico, abaixa seu campo vibracional automaticamente, sendo a causa o crime cometido contra a si mesmo. Isso leva a inúmeras sensações de baixos níveis, podendo causar no espírito incríveis sentimentos de culpa, já que no mundo espiritual a consciência do ser tem voz muito mais ativa que no mundo corporal. Passa então o suicida a sofrer por muitos anos de uma culpa que corrói o seu psiquismo, de uma necessidade de autopunição que o leva à beira da loucura espiritual. Existem casos nos quais o espírito fica de tal forma alucinado, que acaba sendo presa fácil de vampiros energéticos, espíritos sombrios que se aproveitam de desgraçados errantes em sofrimento para sugar-lhes as energias residuais pós-desencarnação” (Pinheiro, 2018, p.77).


As obras estudadas ensinam que a reserva de fluido vital é consumida naturalmente com o passar dos anos, em relação direta com a energia dispendida durante as atividades cotidianas, que por sua vez demandam um bom funcionamento dos órgãos do corpo físico. A abreviação repentina da encarnação, sobretudo no caso dos indivíduos que atentam contra a própria vida gera sofrimento ao espírito, pois em situações assim não ocorre o desligamento gradual do corpo físico que ocorreria naturalmente. Não é possível afirmar qual será a duração deste período de sofrimento ao qual um suicida estará sujeito. Porém, tal período tende a ser maior do que o tempo restante para a conclusão do período de vida na terra devido ao impacto da culpa e pela possibilidade de que tais espíritos sofredores passem a estar sob domínio de outros espíritos de baixa vibração. Essa possibilidade leva mais uma vez à conclusão de que o suicídio não deve ser visto como uma solução para fugir das dificuldades, mas sim como um potencial causador de sofrimentos cuja intensidade não somos capazes de imaginar.


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Referências:

KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Evandro Noleto Bezerra da 5ª edição francesa, de 1869) 2ª ed. 1ª imp. – Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Matheus Rodrigues de Camargo, 1ª ed. 22ª reimpressão. Capivari-SP: Editora EME, 2018.

PINHEIRO, Luiz Gonzaga. Suicídio: a falência da razão. 2ª reimpressão. Capivari/SP: Editora EME, 2018.


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